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Anthea Xavier - Maragogipinho: mulheres, barro e encruzilhamentos mágicos



Maragogipinho: mulheres, barro e encruzilhamentos mágicos





“Dobrai o joelho para a mulher, A mulher nos pôs no mundo. Assim somos seres humanos. A mulher é a inteligência da terra. Dobrai o joelho para a mulher”. 
  Canto de Obatalá




14 de setembro de 2023. Haviam promessas para aquele dia. Um eclipse solar, uma viagem de pesquisa de campo, orientada pelo docente José Cláudio Alves de Oliveira, a partir do componente curricular Seminários Temáticos IV - FCHG87 e uma indagação: para onde direcionar o olhar? Durante o trajeto entre Salvador e Maragogipinho a inquietação me afligia. Calor, caminhos errados sendo seguidos, horas passando em um borrão e absolutamente nenhum plano de como seria a minha estada enquanto pesquisadora em Maragogipinho. Eu, Anthea Xavier, uma mulher preta, de Asè, feiticeira por natureza, entusiasta das narrativas memoriais e artísticas construídas por corpos e mentes dissidentes, principalmente femininas, para além do conceito de mulher estipulado pelo ocidente, capitalista hetero-cis-colonizador e branco. Tentando estar próxima dos cultos às divindades femininas nas filosofias de vida que regem meu tempo aqui nesse plano. Foi elucubrando sobre isso que decidi perceber as mulheres desse território. Trocar com as minhas pares sobre a vida, sobre a transmutação, sobre arte, memória e tudo mais que elas quisessem compartilhar. Tomando como uma benção das ancestrais a possibilidade de habitar o mesmo tempo-espaço que essas mulheres multifacetadas. No texto “No princípio era a cerâmica: a volta às origens”, de Flávia Leme de Almeida, (2010), a autora discorre sobre a cerâmica como fazer feminino, existente em várias organizações sociais, de conexão entre a multiplicidade do sagrado, a fertilidade e a perpetuação da espécie humana. Logo no início, nas páginas 25 e 26, ela diz: “Num tempo em que os seres humanos estavam mais próximos da natureza, ela era venerada e temida como uma divindade poderosa e respeitada como sendo algo sagrado e misterioso. Um dos modos de refletir sobre a história das civilizações ancestrais é através da cerâmica.” Esta, segue explanando na página 27: “Existe uma curiosidade acerca do manuseio e feitio da cerâmica em toda a América: o fato de ser esta uma atividade especialmente feita por mulheres.” Assim se fez a Gênesis da minha percepção, através dos caminhos de Esù, das Iyami, de Hécate e do barro de Nanã, aberta para receber o que me fosse oferecido. Entendendo o produto desses encontros sob a lente de Georges Henri Rivière, no texto "Museums of Today: Their Place and Their Objectives" (1966), percebendo os elementos intangíveis da cultura de forma tão importantes quanto os objetos tridimensionais. Através das relações, das transmissões e das práticas cotidianas que a memória segue sendo construída pela experiência humana desde seus princípios. Colocando esse movimento enquanto ponto de partida da viagem de campo. Maragogipinho recebeu em 2004 o título de Maior Centro Cerâmico da América Latina, conferido através de uma iniciativa da UNESCO. Cidade do município de Aratuípe, possui por volta de 3 mil habitantes. 80% dessas pessoas trabalham direta ou indiretamente com a cerâmica. O ofício de ceramista não é exclusivo de mulheres, muito pelo contrário, a maior parte das olarias pertence a homens, mas as figuras femininas estão presentes em todos os processos e foi nelas que me concentrei. Primeiramente encontrei Dona Lúcia, tímida por trás dos óculos, me contou como as canecas são feitas, compartilhou comigo a história de seu irmão que, artista, desistiu do ofício de ceramista e foi morar em São Paulo faz mais de 10 anos. Ela guarda uma única peça dele, que mostrou com orgulho, dizendo que havia passado tudo que havia aprendido para ele e que sonhava com seu retorno para ajudar nos negócios da família.

Imagem 01 - Dona Lúcia, 45 anos. Ceramista e empresária. 

 
Em sequência conheci Dona Bárbara, mulher de sorriso franco, falamos sobre o calor e sobre os processos de finalização das peças de barro. Compartilhou comigo um pouco de sua trajetória de mais de 20 anos no ofício de ceramista. Disse que a família estava naquele ponto há gerações e que nunca havia experimentado outra vertente de trabalho. O que mais gostava era de ver o barro tomando forma e de saber que suas mãos estavam envolvidas no processo.
Imagem 02 - Dona Bárbara, 32 anos. Ceramista e empresária.


 Dona Elisângela compartilhou comigo ainda mais processos, em especial a pintura feita com um pincel de pelo de gato. O tal pincel é produzido por um vizinho próximo, que colhe os pêlos deixados pelos bichanos um a um, no seu próprio tempo e sem violência animal. Disse ainda que começou a pintar com a avó e que era a parte que mais gostava. Estampar flores no barro a fazia lembrar do mangue.

 
Imagem 03 - Dona Elisângela, 41 anos. Ceramista e empresária. 


 O calor estava intenso na ocasião, perdida pelas ruas precisei me hidratar. Pelo caminho, encontrei o depósito de Dona Nina. Proseamos longamente, novamente sobre o calor, sobre beleza, sobre família, filhos, negócios, investimentos, cachorros e saudade. Dona Nina compartilhou comigo que recebeu o tino para os negócios do Pai adotivo. Homem que reclamava quando Dona Nina, ainda menina, queria permanecer no seu armazém. Dizia que ali não era lugar de menina. Disse que ensaiou ser ceramista, atuou pouco porque queria seguir os passos do pai. Mulher atarefada, atenta em tudo, nem sentava para almoçar alegando não ter tempo de descanso. Desejou-me sorte, astúcia e bom retorno. Pediu para que se retornasse para Maragogipinho, voltasse para tomarmos uma cerveja juntas.
Imagem 04 - Dona Nina, 48 anos. Empresária e ex - ceramista. 


Em determinado momento, percebi-me em uma encruzilhada com cinco pontas e três olarias. Agradeci por ter caminho sobre meus pés e por poder caminha-lo com coragem. O meu corpo, assim como os corpos das mulheres que encontrei é atravessado por diversas experiências. Mulher, negra, feiticeira, filha, neta, prima, amiga, namorada, militante, estudante, figurinista, museóloga, artista visual, conservadora têxtil, intérprete do meu tempo.
Imagem 05. Auto-retrato no centro de uma de 5 vias e 3 olarias, uma encruzilhada múltipla.


Assim como no livro “A Cidade das Mulheres” de Ruth Landes, 2002. Maragogipinho também é uma confraria de mulheres, que são indispensáveis para o funcionamento da comunidade. Neste caso, não necessariamente ligadas aos sacerdócios de cultos de matriz africana como no livro em questão mas, ainda sim, conectadas pelo fazer, pela arte, pelo gênero, pela classe, pelo sistema de organização social e, sobretudo, pelo barro. A matéria transmutável de Nanã, uma das entidades mais antigas do panteão Yorubano, Senhora dos portais da vida e da morte, parte fundamental da criação da obra de arte com forma e função que é a humanidade. (MARTINS, 2012). Essas Iyalodês, senhoras da arte do mercado, mostram diante dos meus olhos que são frutos vivos e férteis das Mães Ancestrais, das Iyami Osoronga, as primeiras mulheres sagradas, donas da cabaça ancestral, da vida e da morte, mulheres pássaro, Ajés transmutadoras, presentes na mitologia da nação Ketu, que tem raízes profundas no candomblé Brasileiro. Complementa o pensamento Irinéia M. Franco dos Santos, no texto ‘Iá Mi Oxorongá: As Mães Ancestrais e o Poder Feminino na Religião Africana’, de 2008. “Ancestrais e feiticeiras, tal caráter duplo das Iá Mi Oxorongá faz-se importante, pois ressalta a especificidade do papel feminino representado por elas. A concepção africana da maternidade, ou da força espiritual feminina, torna-nas símbolos da adaptação e luta entre as forças masculinas e femininas, fundamentais para a manutenção da continuidade da vida. A importância disto reside tanto nas relações de gêneros e no papel comunitário da mulher na África, quanto na maneira como esses elementos mitológicos e ideológicos irão se ordenar nas religiões afro-brasileiras através da preponderância do papel feminino nos cultos.” Ou seja, onde há mulheres há magia. Independentemente de filosofia ou sistema religioso seguido por estas, o encruzilhamento entre o sangue da vida e a água que gera vida é um feitiço poderoso. Sem mulheres não há nada. Durante o percurso de volta, para brindar esses encontros, fomos presenteades com um eclipse lunar que não acontecerá novamente em pelo menos 20 anos. Um evento que combinou muitíssimo com as experiências daquele dia. Afinal, “No mundo inteiro a Lua é associada ao eterno feminino, pois o ciclo mensal do nosso satélite lembra os ritmos da feminilidade” (ALMEIDA apud. Getty, 1997, p.11). As promessas daquele dia haviam se cumprido de maneira muito mais que satisfatória. As Deusas foram gentis comigo e as mulheres de Maragogipinho também.

 
Imagem 05 - Eclipse do dia 14 de setembro de 2023. 
Foto de Carla Natane Carvalho Augusto. 






Bibliografia: 

ALMEIDA, FL., Mulheres recipientes: recortes poéticos do universo feminino nas Artes Visuais [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 238 p. ISBN 978-85-7983-118-8. Available from SciELO Books . Acesso em 16 nov. 2023.

LANDES, Ruth. 2002. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. MARINS, L. L. Òrìsà dídá ayé: òbátálá e a criação do mundo iorubá. África, São Paulo. v. 31-32, p. 105-134, 2011/2012. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2023.

RIVIÈRE, G. Museums of Today: Their Place and Their Objectives. UNESCO, 1966.

MENSCH,P. The Power of Heritage. Tokyo: Museum Management Academy, 2004.

 SANTOS, I. M. F. dos. Iá Mi Oxorongá: As Mães Ancestrais e o Poder Feminino na Religião Africana. Sankofa (São Paulo), [S. l.], v. 1, n. 2, p. 59-81, 2008. DOI: 10.11606/issn.1983-6023.sank.2008.88730. Disponível em: Acesso em: 16 nov. 2023.





Sobre a pesquisadora: 




Anthea Xavier 

Mulher preta, pansexual e cria do subúrbio Carioca. Designer de moda, figurinista, artista visual, técnica em conservação e restauro tendo como área de atuação indumentárias e têxteis. Graduanda em Museologia pela UFBA.
Integrante do grupo de pesquisa " Núcleo de Traje de Cena, Indumentária e Tecnologia" - ECA USP. Integrante da Rede de Museologia Kilombola. Integrante do coletivo MODATIVISMO. Pesquisadora de Indumentárias religiosas de matrizes africanas e seus encruzilhamentos cênicos, de trajes de cena de Teatros Pretos, de metodos de conservação e documentação de trajes de cena, indumentárias e têxteis, principalmente em acervos especializados. Com experiência na área de patrimônio em readequação de reserva técnica, documentação museológica, pesquisa, conservação e restauro de obras bibliográficas, indumentária, tela, objetos em madeira. Atuante também como assistente de figurino, em longas-metragem e como Figurinista em projetos áudio-visuais de música, de publicidade, de teatro e em um longa metragem. Diretora criativa em projetos de moda. Pesquisadora contemplada no Laboratório em moda afro diaspórica - Égbe 2023
Pesquisadora contemplada no Laboratório de criação artística individual em teatro - LACRI (FUNCEB - 2022/2023). Pesquisadora do projeto "Mulheres Lembradas por Salvador" - contemplado pelo prêmio Riachão 2022.  
Com interesse em representações visuais, identidade, comunicação de moda, vocabulário imagético, indumentária, traje de cena, narrativa, linguagem, semiótica, feminismo negro, gênero e magia.

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