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Maria Luiza Coutinho Seixas - Entre Salvador e Maragogipinho: caminhos para refletir o patrimônio

Apresentação

 "Entre Salvador, Maragogipinho e a memórias: caminhos para refletir o patrimônioé uma exposição virtual que nasce dos registros imagéticos e experienciais originados em viagem de campo para a comunidade de Maragogipinho, localidade do município de Aratuípe, Recôncavo Baiano, distante aproximadamente 220 km de Salvador, capital do Estado da Bahia.

Esta incursão, coordenada elo professor responsável do componente curricular “Seminários Temáticos IV”, curso de Museologia UFBA, no semestre letivo 2023-2, se configurou como um convite ao nosso pensar/refletir sobre patrimônio, à luz da museologia, ciência que se ocupa de preservá-lo, organizá-lo e comunicá-lo, a partir dos elementos culturais observados na referida comunidade.



Do patrimônio reconhecido 

O deslocamento, em si, foi um retorno a um lugar que conheci ainda menina, no final da década de 1970, entretanto houve tantas mudanças naquele pedaço de lugar (no que diz respeito à paisagem e à organização espacial) que somente o reconhecimento da Igreja Matriz, dedicada à Nossa Senhora da Conceição que trouxe a certeza de que não estava em outro lugar ou que estava sendo levada por uma memória inventada. 


Imagens 1,2 e 3: 
Igreja Matriz  Nossa Senhora da Conceição, construída em 1710 e reformada em 1930.


reconhecimento da Igreja Matriz fez com que viessem à tona imagens do que tinha vivido naquelas paragens: O convívio com meu avô materno, que abrigava em sua casa no Uruguai, um bairro periférico de Salvador, alguns jovens que vinham para a capital em busca de melhores oportunidades, os feriados de Semana |Santa (para participar da Feira de Caxixis) e São João que passava naquele lugar em que as brincadeiras se realizavam livremente pelo descampado e o livre acesso às olarias cujos os donos eram pessoas consideradas da família. Lembrei das incontáveis vezes em que ouvia o diálogo “- E essa galega, é filha de quem?” / “- É neta de Doutô e Dona Menininha!” / “- Ah, então tá em casa...”.


Imagens 4 e 5: Fachada frontal da casa de Mestre Gregório Macário de Souza e Maria de Jesus Ramos, pais de Mestre Almentino Macário de Souza 


(Re)descobertas

As olarias, que antes seguiam o mesmo tipo de construção (caibros de madeira e cobertura de palha), agora suas edificações seguem diferentes padrões estruturais: algumas se mantém o mesmo padrão antigo (caibro de madeira e massapê, e portas de ferro fundido (sugerindo que mesmo naquela comunidade é preciso reforçar a segurança), mas com cobertura de telhas de cerâmica, outras são de alvenaria, e telhas de cerâmica; muitas delas, em seu interior, além dos espaços destinados ao trabalho com tornos para a manipulação do barro, secagem e queima das peças em fornos de tijolos (estilo adobe), delimitaram um espaço para a exposição e comercialização das peças que produzem.

O número de Olarias também aumentou e parece ter contribuído para que atualmente o distrito de Maragogipinho seja considerado o maior polo de cerâmica da América Latina. Contudo, é preciso ressaltar que esse reconhecimento não foi possível por conta de um alto investimento econômico ou financiamentos milionários como costumam ser vistos em produtos alinhados à logica capitalista, mas sobretudo porque a produção de cerâmica em Maragogipinho continua seguindo a uma tradição que já passa dos 300 anos e os oleiros, como são chamados os artesãos que fabricam as peças, aprendem o ofício desde cedo, numa arte que é passada de pai / mãe para filhos e filhas. 

Imagens 6, 7, 8 e 9: Fachadas de Olarias no entorno da central e próximas ao rio Juaguaripe.


Na maioria das vezes, toda a família está envolvida em alguma parte da produção que exige o tratamento do barro, modelagem, secagem, queima e pintura das peças. Circulando pelas olarias, foi possível constatar que a produção de cerâmicas ainda conserva as ferramentas e equipamentos antigos, o que faz valorizar ainda mais o trabalho dos artesãos da comunidade, pela qual, muitas gerações já foram formadas moldando o barro.


Imagens 10, 11, 12 e 13: torno e forno utilizados como equipamentos no processo de produção da cerâmica local.


Em tempos passados a produção era voltada para os utensílios que fazem parte dos muitos e diferentes momentos da alimentação (pratos, cumbucas, panelas, alguidares, tigelas) e aqueles que especificamente têm a função de guardar e oferecer água (moringas, quartinha, quarta, quartinhão e porrão ou pote), as peças produzidas atualmente apresentam maior diversificação no que diz respeito à funcionalidade dos objetos e o foco principal seja no nicho de artigos de decoração.

Imagens 14, 15 e 16: Peças decorativas e utensílios produzidos pela Olaria de Biita e Junior


As mudanças estéticas também são perceptíveis quando tratamos no universo das miniaturas: em vez de encontrarmos os tradicionais Caxixis[1], representações de pequenos animais (como borboletas por exemplo) e que não fazem parte do bioma ao qual a comunidade está inserida (cavalos marinhos, golfinhos, tartarugas marinhas, estrelas do mar) ficam expostos e dominam as prateleiras e expositores nas lojinhas das olarias.

Imagens 17, 18, 19: Miniaturas produzidas pela Olaria Cerâmica Pais e Filhos.


Os temas de matriz africana ainda são valorizados. Entretanto, a estética da louça caxixi inspirada na louça ibérica e que causavam reconhecimento sobre a produção e sua procedência, em qualquer lugar que chegassem, praticamente desapareceu. Tudo muito limpo, sem as volutas e desenhos mediterrâneos trazidos das olarias de Portugal, talvez voltadas para atender demandas específicas do mercado de design de interiores, da arquitetura rústica e do estilo Bo-Ho me fizeram questionar até que ponto aquela ausência de um padrão estético, que conheci na infância e na minha memória representava a perda da identidade de um bem cultural e de uma de criação popular. A cerâmica Marajoara seria reconhecida sem os grafismos / desenhos marajoaras?

Caminho de volta

As emoções provocadas pela emersão de lembranças, o impacto das mudanças no espaço decorridas no e pelo tempo estavam postas, juntas e misturadas com o objetivo inicial que era pensar / refletir sobre o que é patrimônio. Maragogipinho me deu algumas pistas acerca disso!

A reboque de todas constatações acerca e diante da relevância concernente as processos e produtos culturais de Maragogipinho, outras indagações: Porque o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), órgão responsável pela instituição de normas e políticas de estímulo à preservação do Patrimônio cultural no estado da Bahia, ainda não registra e nenhuma sinalização para isso venha a acontecer (pelo menos publicamente como fez com outros processos) a produção cerâmica (considerando que apresenta, com o mesmo potencial e força duas faces da mesma moeda: materialidade e imaterialidade) de Maragogipinho como bem cultural do estado? O modo como desenvolve cada uma das etapas do processo (preparação da argila, modelagem e torneamento, secagem e queima, pintura e decoração), bem como o modo como o processo é ensinado e aprendido não se mostram relevantes para que sejam incluídas em um dos livros de inscrição do patrimônio que fica sob a responsabilidade do mencionado instituto?

Ao tomar o patrimônio cultural a partir da perspectiva museológica é necessário não esquecermos de sempre questionar os seus “usos sociais” do patrimônio, nem tampouco os conflitos e dissensos que podem ser originados pelas práticas de seleção, preservação e consagração que os órgãos responsáveis realizam durante o processo de registro e tombamento do patrimônio cultural. Da mesma forma, é preciso que não se esqueça que o que é legitimado como patrimônio cultural imaterial faz parte do que é nossa herança cultural, cuja origem deve sempre associada aos nossos antepassados e vai (ou deve ser!) incorporado espontânea e fluidamente na concepção que construímos da nossa cultura e na nossa identidade cultural.


[1] Caxixi é a designação regional que se dá às miniaturas feitas de barro a partir de muitos tipos de utilitários da região. Um conjunto de caxixi era composto por panelinhas de barro, jarras de agua, pratos, fruteiras.





1 comentário:

  1. O texto, com organização e revelação do patrimônio cultural, revela o lugar, a natureza patrimonial e a incorporação entre museologia e pesquisa documental.

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