Sou Valério Hillesheim.
As fotos, a descrição e os relatos abaixo, são fruto de uma aula prática, do componente curricular, Seminários Temáticos IV, pós uma viagem para a cidade de Maragogipinho, Bahia.
A cidade de Maragogipinho
fica às margens do rio Jacuípe. O rio Jaguaribe é encantador! As águas calmas,
em tom azul escuro, em contraste com o verde lindo das margens, propiciam um
instante de serenidade, calma e contemplação. O tempo para por alguns instantes
e um breve passeio traz memórias mil: infância, brincadeiras, aprender a nadar,
a pescar, fazer canoa (caíco). Também, trabalhar, lavando roupa, lavando lã de
ovelha, limpando buchada, lavando o carro de boi, lavando o carro, andando de
barco. Ah! É só um rio e uma visita. Não! É a condensação de uma trajetória, a
síntese de algo que parecia perdido e, de repente, está presente. Mais vivo do que
nunca. Quem consegue deletar o sabor intenso do vivido, por qualquer razão?
Título: Filtro de Barro
Sem catalogação
O filtro é composto por argila. A argila é oriunda da região de Maragogipinho. É trabalhada pelos ajudantes do Oleiro para limpá-la (pequenos pedacinhos de pedra, madeira ou qualquer outra impureza densa que possa atrapalhar a modelagem). Depois de amassada e humedecida de forma a ter a consistência desejada, o Oleira trabalha a argila e molda as três peças que compõe o filtro (O tanque de base, onde fica a água filtrada, o tanque superior onde é colocada a água para filtrar e a tampa)[1]. No tanque inferior tem um buraco para que seja instalada uma torneirinha para sair a água. No fundo do tanque superior, tem dois furos para que sejam instaladas as velas que filtram a água. No topo do tanque superior, uma abertura, com tampa, para inserir a água a ser filtrada. O processo de produção do objeto é feito com a argila a ser moldada no torno. O torno é chamado de roda do oleiro, que pode ser manual ou elétrica. Após o filtro pronto, ele é aquecido, por determinado período, no forno, para secagem. Após o término do processo, o filtro pode ser ornamentado ou pintado, segundo a criatividade do artista. Findado o processo, ele é comercializado nos galpões da própria olaria, nas lojas da cidade de Maragogipinho ou distribuído para o comércio regional, nacional e até internacional. É um produto, relativamente, barato (entre 80,00 e 200,00 reais, dependendo do tamanho e da arte produzida nele)
O filtro filtra. A arte a
serviço da vida. A água purificada. A água com sabor, mesmo insípida. O barro
da margem, dá limites ao leito do rio. Faz o destino da água encontrar o mar,
logo ali. O barro suja a água. Dá gosto ruim à água. O mesmo barro que suja a
água, pela mão do oleiro, pela arte, vira instrumento, manufatura, trabalha
para limpar a água que sujou. O filtro filtra. Mais, limpa todos os outros poluentes.
Que síntese! Ele, o filtro, filtra! Está aí, em minha frente. Filtra a água,
produz água límpida. Na água vem a nitidez da memória: o trabalho, a
transformação, o devir. Algo que não era veio a ser. O filtro veio a ser um
objeto, pela mão de um trabalhador. Não sei
quem é. Mas, simbolicamente, a presença da arte humana está nele. Medeia o aqui
do uso, com o acolá das recordações. Que fantástico! Como um barro, arranjado
de certo modo, tem tanto poder? Ele provoca um deslocamento no tempo e no
espaço. Remete à vida da vida! Ele faz beber a vida. Vivo embriagado! Estou viciado.
Terá ele o sopro da vida? É um instrumento do sopro da vida? O filtro, filtra.
É filtro. Deixa passar só o que quer.
Panelas de barro para
feijoada e moqueca.
O processo de produção das panelas de barro é
muito similar ao processo de produção dos filtros. O que pode mudar é o tipo de
argila e a origem da argila. Algumas panelas comercializadas em Maragogipinho
não são produzidas nas olarias da cidade. São trazidas do Espírito Santo. As
panelas, além da beleza estética, da criatividade dos artesãos, possibilitam
ver uma relação direta entre trabalho e cultura. A arte de cozinhar exemplifica
a possibilidade de vermos, via o trabalho, como a natureza é transformada em
cultura. “A cozinha estabelece uma identidade entre nós – como seres humanos
(isto é, nossa cultura) – e nossa comida (isto é, a natureza). A cozinha é o
meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura. A cozinha é
também uma linguagem por meio da qual ‘falamos’ sobre nós próprios e sobre
nossos lugares no mundo” (Silva, 2014, p. 43). Esse artefato, a panela, pela
feijoada ou pela moqueca, torna possível um produto que une pessoas pelo gosto.
A feijoada tem um sabor fenomenal, assim como a moqueca. Mas, as panelas são
símbolos do sabor do sabor. Elas medeiam a arte de cozinhar, o cheiro dos temperos,
o amor e a arte de quem cozinha, os curiosos que visitam a cozinha durante o
preparo. Os que roubam um pouco do alimento, pois ele é irresistível. Em linguagem
jurídica, coerção irresistível. Logo, quem rouba um pouco do alimento antes de
ser servido à mesa, está completamente desculpado. Com elas, não estamos sós. O
outro, os outros estão presentes. Os outros são: o mundo, a natureza, o
trabalho, a arte, o artista, o outro pessoa, os outros pessoas, O Grande Outro.
No fruir coletivo do alimento, o compartilhar dos sabores, saboreia-se a
amizade, os afetos, a comemoração. A viagem para Maragogipinho é uma viagem na
viagem, muitas viagens em uma só viagem. É quase um itinerário de uma vida. Por
isso, para Lévi-Strauss, “[...] a comida é não apenas ‘boa para comer’, mas
também, ‘boa para pensar’. Com isso, ele quer dizer que a comida é portadora de
significados simbólicos e pode atuar como significante” (Silva, 2014, p. 45).
Nesse sentido, poderíamos pensar uma ‘digestão’ não dualista entre o sistema
digestivo e o sistema cognitivo. “São as convenções da sociedade que decretam o
que é alimento e o que não é, e que tipo de alimento deve ser comido em quais
ocasiões” (LEACH, 1974, p. 32). E o papel do alimento na construção de
identidades e a mediação da cultural na transformação do natural que é
importante [...]” (Silva, 2014, p. 45). Portanto, as panelas são, também, uma
espécie de semióforo.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais / Tomaz Tadeu da silva
(Org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 15ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
[1]
Para saber o processo completo, desde a coleta da argila, transporte,
descarregamento, tratamento e os principais processos e técnicas de manipulação
da argila, até a peça ficar pronta, consulte a seguinte referência: SIMÕES, Iaçanã
Costa. A Cerâmica Tradicional de Maragogipinho. Salvador, 2016. Dissertação de
Mestrado apresentado ao Programa de Pós—Graduação de Belas Artes da UFBA. .
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarTexto com objetividade na tipologia de elemento cultural que buscou documentar. Além do zelo na escrita, revela o suporte bibliográfico e o atento ao patrimônio cultural.
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